Escrever

Hoje quero escrever, mas não tenho pelo que escrever.
Hoje quero dormir, quero que não falem comigo, preciso da minha solidão.
É na minha solidão que me encontro.
Sim, encontro-me.
O meu cantinho, onde me resguardo e me protejo é como uma bola de sabão, vai longe, flutua, brilha, mas por vezes...rebenta.
Quero escrever, procuro palavras difíceis, linguagem transcendente e a melhor construção frásica, mas tudo o que quero escrever tenho no ouvido.
Quero escrever, quero o melhor tema, a mais correcta abordagem mas na verdade é que hoje acredito em todos os dogmas e vejo-me a transpor todas as regras.
Tento imaginar o que escreveria, mas o meu coração fica acelerado, cansado e exausto só para seguir a imaginação.

Hoje já não escrevo porque tenho tudo já nas vozes do meu sonho, um sonho amparado.

Um devaneio teu

Sabes de que me lembrei?
De um devaneio teu. Devaneio num dia em que me olhaste com ternura mas com um olhar firme. Eu senti-te diferente, acanhado, até envergonhado. Passados breves segundos percebi que ias dizer algo relacionado com os teus sentimentos, algo que por muito que possa parecer banal eu sei o quão difícil para ti é, e sempre foi, falar de dentro. Mas nesse momento fizeste-me a confissão mais bonita e simples. Foi uma simplicidade fascinante, quando muito se quer dizer, muito de fantasia e pouco se diz. Eu assim vi-te a alma, transparente e aberta.

"Sabes, sempre fui uma pessoa que passava bem sem afectos, nunca senti saudades de ninguém, mas agora preciso de ti, fizeste-me sentir falta de alguém"...

Encolhi-me, peguei no teu rosto, encostei-o ao meu peito. Eu que muito falo, fiquei sem que dizer.
Para mim foi muito mais do que as palavras palavra-a-palavra, sei que te rasgaste do mais fundo que há em ti...
E não mais me esqueci.

Devolve-me a minha vida

Devolve-me a minha vida, que não sei o que fazer sem ela.
Devolve-me o riso, as gargalhadas puras de crianças, a doçura dos chupas que insistíamos levar para as aulas, as receitas experimentais na cozinha, o gozo dos almoços no sitio habitual, na mesa habitual.
Devolve-me o friozinho no estômago na hora do mini-teste, o empolgar com as novidades que experimentávamos, as parvoíces próprias da idade.
Devolve-me a futilidade das tardes roubadas ao trabalho e passadas entre amigas, entre "passeios" pelas lojas, entrar e sair dos vestiários (um número acima,um número abaixo,esta camisola tem a tua cara e esta tem a dela).
Devolve-me aconchego da noite, que sempre atravessávamos com longas conversas às escuras deitadas.
Devolve-me as músicas que me faziam feliz, a voz redonda e cheia com que as cantava pela janela do quarto, sentada junto ao mar, no banco verde da escola ou até no pombal.
O prazer das manhãs deitada na cama e vontade de ler um livro durante a noite, um livro vulgar e lamechas até mais não.
Devolve-me o prazer do silêncio e do telemóvel desligado.
Devolve-me a capacidade de rir até de manha ouvindo piadas sem piada abrilhantadas por piadas privadas atiradas ao ar.
Devolve-me as noites pacificadas no enrosco de um abraço e o gozo de ver um filme de terror.
A sede de saber as cusquices do dia, da semana e de escrever no diário, diário aberto.
Quero os choros, intrigas sem sentido, as "picuices" e os argumentos sem nexo.
Devolve-me, que as pessoas já falam e comentam e reparam no invólucro de mim que sobrevive rasteiro, e toma (leva contigo), o medo que tenho no peito, que nada se repita e tudo se perca.
Fica comigo a vontade de crer as canções, as conversas, os risos e todos os sons que a felicidade possa ter.
Devolve-me a minha vida, que não sei o que fazer sem ela.

Apetites

Hoje não me apetece ir a nenhum lado, apetece-me estar só como um cão sem dono.

Enroscadinha numa manta, em frente a uma lareira, a ler o livro mais banal possível.

Sim, o tempo la fora está atroz e eu aqui ouvindo a chova a cair penso se a chuva será lágrimas perdidas de romances fracassados.

O dia de hoje parece um mistério que eu não desvendo. Volto a página para trás.
Tenho medo de passar do prefácio.
Este medo de avançar as páginas (que já nem em papiro nem em pergaminho estão) pode ser um estigma de uma vida? de vivências?

Medito sobre isso.

Chego a conclusão mais disparatada e certeira. Sinto-me perplexa.
Gosto de rotinas na vida. Não gosto de passos grandes e mudanças. Gosto das banalidades do dia-a-dia e de repeti-las.
Gosto só de pequenos pormenores que surpreendam e mudem alguma coisa, mesmo que mínima.
Mas não tenho uma grande necessidade de procura incessante de algo novo e ainda indefinido. E é tão bom, transpassa a tranquilidade e a nossa própria condição.
A vida por si só é uma rotina, cíclica.

E agora em forma de despedida fecho os olhos (como fazem as crianças quando o pensamento lhes foge numa tentativa de o apanharem).

...Mas as vezes tenho desejos mais ousados.

Poema à mãe

"No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves."
Eugénio de Andrade

Recheado de significado, simbologia, palavras fortes e ternurentas.
Esta simbiose somos nós, o que sentimos, os nossos sentimentos, a nossa relação.
A tua dependência é por vezes asfixiante, mas eu no mais fundo de mim gosto dela.
Preciso de ti, de mim contigo e de mim sozinha. Preciso de tudo, cada coisa no seu momento.
Muito poderia eu escrever ou dizer, mas sei no final tudo tinha ficado por escrever ou dizer.
Porque a nossa relação não consegue ser descrita em nenhuma ciência exacta seguindo a típica metodologia cíclica: inicia-se por observações e medidas experimentais, estas conduzem à formulação de um modelo ou de uma teoria, da qual se podem extrair previsões sobre novos fenómenos que, se confirmados, justificam a validez da teoria.

Nas desventuras nos entendemos e nas velhas quadras nos sossegamos.
Mas quero que saibas e acredites que, no mais fundo de mim, não me esqueci de nada, mãe.